Receitas em queda, custos a subir, sobretudo à boleia dos salários e de um excesso de cargos dirigentes, e um blackout no dever de reporte à tutela deixaram o governo, após análise da informação disponível (orçamento, relatórios de auditoria e contas de anos anteriores), especialmente preocupado com o estado das contas da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) e com a capacidade de manter a sua missão assistencialista.

Ainda sem conhecer o relatório e contas de 2023 — a SCML pediu ao Tribunal de Contas a prorrogação do prazo para apresentação até final de abril —, certo é que as contas relativas a 2021 e 2022, depois de revistas e objeto de auditoria interna e externa, foram aprovadas pela ministra anterior, bem como o orçamento para 2024, publicado no site da instituição. E esses documentos revelam que as receitas da Santa Casa continuarão a não chegar para fazer face às despesas crescentes, observando-se um rápido consumo dos saldos de tesouraria, que minguaram de 217 milhões de euros em 2019 para cerca de 41 milhões em 2022.

O valor atual não chegará para cobrir os esperados cerca de 60 milhões de euros negativos que terá atingido no ano passado, com a despesa a aumentar, entre 2020 e 2023, mais de 27 milhões de euros e as remunerações a justificar dois terços desse aumento (o restante incremento vem de fornecimentos e serviços externos).

Até à data, e apesar dos pedidos da ministra do Trabalho, Segurança Social e Solidariedade, Ana Jorge nunca enviou ao governo quer as contas da instituição relativas ao último ano, mesmo que em draft, nem o relatório referente à execução do primeiro trimestre de 2024, nem o suposto plano de reestruturação elaborado para resolver a situação emergente da SCML. Em reunião com a Provedora, a 12 de abril, a ministra Maria do Rosário Palma Ramalho pediu aqueles documentos a Ana Jorge, mas nunca os recebeu, tão pouco justificação para a recusa em apresentá-los.

A verdade é que, mesmo sem o relatório do último ano, a situação económico-financeira da instituição é preocupante, com as receitas do jogo a cair e a estimativa de despesa a crescer, nomeadamente na componente de salários. Uma diferença que encontra razão não apenas num aumento de 24% nas remunerações dos órgãos sociais (conforme expresso no documento elaborado por Ana Jorge para 2024) como em alterações recentes levadas a cabo nas estruturas de pessoal — o SAPO sabe, por exemplo, que o técnico de ar condicionado foi promovido a diretor de unidade, sendo agora esse serviço contratado fora.

Com cerca de 50 diretores no 1.º escalão de remuneração, que se fixa em 5 mil euros brutos mensais acrescidos de mil euros em despesas de representação, e 34 subdiretores contabilizados (os cargos dirigentes somam, no total, 523 pessoas, consumindo mais de 60% das receitas da instituição), a auferir entre 5.000 e 5.700 euros/mês, só em 84 salários são consumidos perto de 7 milhões de euros.

Do lado da receita, as notícias não serão mais animadoras, uma vez que 85% desse bolo vem dos jogos. Desde 2020 a rondar uma faturação de 195 milhões de euros, conforme análise do mesmo documento, e antecipando-se que o primeiro trimestre deste ano terá ficado pelo menos 10% abaixo do orçamentado, a previsão de conseguir atingir 214,5 milhões (+10%) em receitas de jogo neste ano é pouco credível.

Contas feitas, a previsão de receitas total para 2024 soma 10 milhões à estimativa de 2023. Há porém que considerar que o aumento real que devia ser considerado ascende a 44 milhões adicionais de receita de 2023 para 2024, uma vez que, na estimativa de resultados apresentada para o ano passado (perto de 90 milhões), está contabilizada a injeção extraordinária e irrepetível de 34 milhões feita pela Segurança Social no final do ano, concretizada e homologada pela anterior ministra em três dias, numa altura em que os ordenados estariam já comprometidos.

Há ainda a pesar nas contas uma dívida da SCML que, a 31 de julho de 2023, se fixava em perto de 27 milhões de euros — à data, o grupo apresentava um resultado líquido consolidado negativo em 9,9 milhões de euros e um capital próprio igualmente negativo, de 12,5 milhões de euros.

Antecipando, sabe o SAPO, que as receitas do primeiro trimestre de 2024 terão ficado cerca de 30 milhões de euros abaixo do previsto no orçamento da SCML, teme-se agora que os problemas de fundo da instituição vão muito além dos danos financeiros/patrimoniais que a decisão de internacionalização dos jogos provocou, pondo em risco a atividade assistencialista da instituição.